Minha foto
Porque escrever não é apenas um dom, é uma arte, é um prazer, é motivação, é fascinação, é ser, é poder, é liberdade, é apredizagem. Escrever é expressão, é viver.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Processo de Morte em "Uma Prova de Amor"





Por: Nadilma Nascimento e Nathalia Sampaio



O filme “Uma prova de amor” (My sister’s keeper – 2009), do diretor Nick Cassavetes, retrata o drama vivido por Kate Fitzgerald (Sofia Vassilieva), uma adolescente que tem diagnóstico confirmado de leucemia desde a infância. A sobrevivência de Kate deu-se graças à atitude dos pais, Sara (Cameron Diaz) e Brian (Jason Patric), de terem mais um filho para ser compatível com a irmã e permitir que ela tivesse a vida prolongada. Essa decisão foi tomada, pois nenhum dos pais, nem o irmão Jesse (Evan Ellingson), eram compatíveis com a mesma. Assim, Ana (Abigail Breslin) foi gerada através de um processo in vitro, onde todos os genes foram manipulados para que a compatibilidade fosse possível.

A princípio o foco do drama é em Ana, que procura o famoso advogado Campbell Alexander (Alec Baldwin), para iniciar um processo os pais, pedindo uma “emancipação médica”. Porém, no decorrer do filme, fica claro que a decisão de Ana na verdade foi um pedido de Kate, que já estava cansada do tratamento da leucemia, que já se arrastava por anos.



De acordo com Kovács (2002), raramente os pacientes são consultados, acerca do seus desejos, sempre havendo uma preocupação com os sintomas da doença e com a doença em si, deixando-se de lado o indivíduo. Com Kate isso acontecia, ela não era consultada sobre seus desejos, sendo assim, ela decidiu falar com os irmãos sobre a vontade de morrer, que já estava pronta e que não queria o transplante de rim, que seria doado por Ana. Esse processo cirúrgico já estava decidido pelos pais e pelos médicos, mas ninguém procurou saber a vontade de Kate.

O processo de morte é bem presente no filme e é possível identificar alguns dos estágios definidos por Kubler-Ross (1969), citada por Kovács (2002), negação e isolamento; raiva; barganha; depressão; e aceitação. Inicialmente não é demonstrada uma negação, já que a doença foi diagnosticada quando Kate ainda era muito nova. Contudo, no decorrer do filme, são mostrados flash’s em que Kate aparece apresentando algumas atitudes que se assemelham aos estágios de Kluber-Ross.

Em uma das cenas, Kate encontra-se em seu quarto, quebrando as coisas, ouvindo um som alto e bebendo, ao ser questionada por Ana ela diz que estar fazendo uma festa de despedida, dizendo: “Adeus mãe, adeus droga de hospital, vou ver o Taylor!”, tomando remédios para morrer. Pode-se dizer, que Kate foi tomada por raiva, por todo processo que vinha passando e por perder o namorado, Taylor (Thomas Dekker), que também tinha leucemia.



Além desta cena, também existem outras duas que demonstram um momento em que Kate estava bem depressiva, se achando feia, afirmando que as pessoas iriam rir dela, Sara, para não ver a filha naquele estado, raspa a cabeça. Em outras duas cenas, Kate conversa com Ana e deixa claro que já está pronta para morrer, em uma das cenas ela fala que a mãe voltaria a furá-la e cortá-la novamente e que ela não queria mais isso, assim como é explanado no texto de Kovács (2002), a pessoa não é encarada como sujeito e sim como objeto de atuação do médico, passivo, submisso e silencioso. Na outra cena ela diz a Ana que tudo será tranqüilo e demonstra, ainda mais, que já aceitou a sua condição e que só basta esperar a morte.




A autora afirmou que, nem todos os pacientes passam por essas fases, nem as passam na mesma ordem, e com Kate isso fica bem claro, ela passou apenas por algumas fases.

A família também passa pelos mesmos estágios que o paciente, segundo Kovács (2002), e no caso da família Fitzgerald quem passou mais intensamente pelos estágios foi Sara, ela muitas vezes passou pela negação, não aceitando que aquilo estava acontecendo com sua filha e lutou todo instante para que Kate fosse salva.




Sara também passou muitas vezes pela raiva, raiva pela doença, raiva de Ana por negar ajuda a irmã, raiva de Brian por tirar Kate do hospital, raiva do médico, enfim, ela não conseguia aceitar a doença da filha. Sara estava sempre entristecida por ver o sofrimento da filha, tentando fazer de tudo para vê-la bem, alegre. E, por fim, Sara acabou aceitando que Kate queria partir, talvez tenha aceitado apenas após a morte da garota, afinal ela lutou a vida toda para manter a vida de Kate, mas fica claro que ela aceitou o fato de que não poderia fazer mais nada para contornar a situação.

Kovács (2002) afirmou que, em muitos casos, o paciente sabe da gravidade do seu caso, mesmo que não tenha se informado objetivamente, mas teme falar com seus familiares, pois acha que eles não sabem e imagina que sofrerão se souberem. No fundo isso aconteceu com a Kate, ela já tinha certeza de que não iria sobreviver, mesmo recebendo o rim de Ana, mas ela comentou apenas com os irmãos, evitando falar com a mãe, pois ela sabia o quanto Sara lutava para mantê-la viva.





A acima citada afirmou que o luto não começa no momento da morte, e sim quando a pessoa percebe que ela é inevitável. Kate se preparou durante muito tempo para morrer, preparando tudo para a morte ocorrer naturalmente. Por isso pediu aos irmãos que a ajudassem e também preparou um espécie de livro de recordações, onde deixava mensagens para toda família, inclusive pedindo perdão, afinal toda família estava envolvida no seu processo de morte.





"A leucemia tem um final lento, portanto, há tempo para elaboração. A negação tem de ser confrontada, os sentimentos precisam encontrar um canal de expressão. Os membros da família também têm de realizar desapego. Podem deixar o paciente seguir seu processo, sem que isso signifique abandon ou isolamento" (KOVÁCS, 2002, p. 204).


Nesse caso, Sara não permitiu que o desapego acontecesse, pelo contrário, ocorria o apego a esperança de que Kate sobreviveria e se recuperaria, apesar de se ter ciência das poucas chances de reestabelecimento. A elaboração ocorreu de forma brusca, quando foi revelada a vontade que Kate tinha de partir, de finalmente descansar, sendo que esse foi um processo mais doloroso do que teria sido se ocoresse a longo prazo.

São muitos os aspectos importantes destacados no filme, porém nele não é visto um tratamento psicoterapêutico, o que seria de grande auxílio, tanto para Kate, quanto para sua família, principalmente para Sara. “A família também precisará de ajuda, quando ocorrer a morte efetiva, para realizar o desligamento efetivo” (KOVÁCS, 2002, p. 204). Essa ajuda poderia ser ofericida por um psicólogo, que também teria dado esse auxílio, ajudando que o processo de desapego ocorresse, desde o momento em que a doença foi descoberta.

Kovács (2002) ainda ressaltou que o processo psicoterápico não está focado na cura do paciente, nem em alongar a vida, mas sim em tentar proporcionar uma qualidade de vida e auxiliar na comunicação e expressão de sentimentos.




Em dado momento, no filme, é apresentada a possibilidade de Kate ir para casa, para poder ter uma qualidade de fim de vida, o que é totalmente repudiado por Sara, que não quer aceitar o fato de a filha estar morrendo. Essa oferta é muito semelhante a proposta do “movimento hospice”, apresentado por Kovács em seu texto, onde procura-se dar ao indivíduo um alívio da carga da doença terminal. Esse seria um auxílio muito válido para Kate e sua família, mas Sara ainda não estava pronta para encarar os fatos.






Referência:

KOVÁCS, M.J. Pacientes Terminais e a Questão da Morte. Em _______. Morte e Desenvolvimento Humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, ed. 4, cap. 11, p. 195-211, 2002.


Filmografia:

Nick Cassavetes. Uma Prova de Amor (My Sister's Keeper). Estados Unidos, 2009. 106 minutos.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Linguagem e Desenvolvimento em Kaspar Hauser




"Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?"
(Prólogo do Filme O Enigma de Kaspar Hauser, 1974).



O filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, Herzog 1974, narra a história real do misterioso garoto encontrado na praça pública de Nuremberg – Alemanha –, em 1828, com apenas uma carta destinada ao oficial da guarda. É nesse cenário, da Alemanha do século XIX, que a trama do filme se desenrola.

Essa é uma história que possibilita diversos focos de discussão, sejam eles no campo filosófico, psicológico, sociológico, etc. O roteiro do longa, em si, deixa margem para que tais análises possam ser feitas, destacando importantes pontos da história e trazendo diálogos que demonstram a evolução do personagem central. Apesar das diversas possibilidades de pontos a serem abordados, detenho-me nas conseqüências do isolamento que Hauser vivenciou.



Kaspar Hauser viveu enclausurado durante grande parte de sua vida, sendo alimentado por um homem misterioso, que lhe dava apenas pão e água – motivo pelo qual, mais tarde, Hauser não consegue comer carne e beber álcool –, cresceu sem ter contato social, privado da linguagem, sendo assim não desenvolveu muitas características sociais.

Segundo Borges e Salomão (2003) a linguagem é uma das primeiras formas pela qual o indivíduo se socializa, além disso, é através dela que é possível a criança ter contato com vários aspectos sociais, antes mesmo de aprender a falar.

E é justamente nesse ponto que Hauser sofreu grande déficit, pois o isolamento ao qual foi submetido o impediu de ter acesso a linguagem e, conseqüentemente, ele teve que passar, posteriormente, por um processo de aprendizagem intenso, aprendendo em pouco tempo o que poderia ter aprendido ao longo da sua vida.



Além disso, a criança é levada, pela linguagem, a compreender o mundo de forma abstrata, pois os signos lingüísticos levam o sujeito à abstração. De acordo com Saboya (2001), para Hauser, aparentemente não foi satisfatório conhecer o mundo pela linguagem e seus signos e nesse sentido a autora ainda ressaltou que, para Vygotsky o pensamento e a linguagem surgem de forma independente e unem-se posteriormente numa espécie de linguagem interior, que forma a maior parte do pensamento maduro. A autora ainda afirmou que a educação permite a abstração, porém Hauser não foi submetido a isso.

Uma das passagens do filme que retrata esse fato é a incapacidade de Hauser em distinguir o que era sonho e o que era real, quando estava na clausura. Além disso, existe um diálogo no filme que vale ser destacado:

Hauser: Não entendo, só um homem muito grande poderia ter construído isso (ele olha para a torre). Eu gostaria de conhecê-lo.
Tutor: Não é preciso ser tão grande para construí-la, pois existem andaimes. Entenderá quando o levar a uma construção. Você morou nesta torre, atrás daquela janela. Não se lembra?
Hauser: Isso não é possivel, pois só tem alguns passos de largura. Quando estou dentro do quarto e olho para a direita, a esquerda, a frente e para trás, só enxergo o quarto. Quando olho para torre e depois me viro a torre desaparece, então o quarto é maior que a torre.





Esse diálogo mostra claramente que Hauser não pensava de forma abstrata e sim de forma literal, sem conseguir compreender o mundo a sua volta. A capacidade de abstração, que surge através da interação social e da linguagem, não foi desenvolvida por Hauser, fazendo com que ele não conseguisse absorver certas explicações que exigiam o pensamento abstrato.

De acordo com Rocha (2005), para Piaget, aprendizagem é a obtenção de determinada resposta, que foi adquirida através de uma experiência particular. Já o desenvolvimento é definido como a aprendizagem em si, que proporciona a formação de conhecimentos. Assim, Hauser não foi apenas privado da aprendizagem, mas também ficou impossibilitado de se desenvolver devidamente.

Apesar de Hauser ter vivido por muito tempo sem contato com outras pessoas, sem contato com a linguagem, sua capacidade de aprender permaneceu. Isso é perceptível, pois ao passar a viver em sociedade, ele foi aprendendo a falar e agir de acordo com os parâmetros sociais, do contexto em que estava inserido. O desenvolvimento tardio lhe trouxe alguns prejuízos, porém ainda assim ele foi capaz de pensar, sentir, aprender.

O Enigma de Kaspar Hauser não é apenas um filme contando a história de um homem que viveu socialmente isolado, é também um filme que retrata a importância da interação social, da convivência com a linguagem, mostrando que apesar da subjetividade humana e das características individuais de cada sujeito, o desenvolvimento é possível através da socialização, da dinâmica entre organismo e ambiente.





Referências:



BORGES, L. C.; SALOMAO, N. M. R. Aquisição da linguagem: considerações da perspectiva da interação social. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 16, n. 2, 2003. Disponível em: . Acesso em: 28/10/2010 às 20h01min.

ROCHA, P. Pré-Operatório: Fases de Desenvolvimento da Criança. Escola S/3 Arq. Oliveira Ferreira. 2005. Disponível em: Acesso em: 24/10/10 às 15h45min.

SABOYA, M. C. L. O ENIGMA DE KASPAR HAUSER (1812?-1833): UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL. Psicologia USP, São Paulo, v. 12, n.2, 2001. Disponível em: . Acesso em: 01/11/2010 às 15h22min.


Filmografia:


Werner Herzog. O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für Sich und Gott Gegen Alle). Alemanha, 1974. 110 minutos.